fonte: Estadão
Desde o início da carreira, há quase 60 anos, a cirurgiã Angelita Habr-Gama se acostumou a quebrar paradigmas. Em uma especialidade dominada por homens, foi uma das primeiras mulheres a fazer residência na área de cirurgia na Faculdade de Medicina da USP e primeira mulher a ser aceita na pós-graduação do St. Mark’s Hospital, na Inglaterra.
Os méritos acadêmicos e inúmeros títulos conquistados não a fizeram desacelerar. No mês passado, a brasileira foi premiada nos Estados Unidos pela Sociedade Americana de Cirurgiões de Colo e Reto, ao lado de sete colegas, pela autoria do melhor estudo de 2013. O feito teve como ponto de partida uma pesquisa iniciada há mais de duas décadas, quando Angelita passou a tratar pacientes com câncer de reto sem cirurgia.
O reto é a porção final do intestino grosso e os pacientes que desenvolvem tumores nessa região tinham que, obrigatoriamente, tirar parte do órgão. Em boa parte dos casos, a cirurgia tinha como consequência a colostomia, técnica que exterioriza o intestino para que as fezes passem a ser eliminadas por meio de uma bolsa acoplada ao corpo do paciente.
“Naquela época, o paciente passava pela quimioterapia e radioterapia e, mesmo assim, independentemente do resultado, fazia a cirurgia. O que começamos a observar foi que, em alguns casos, quando tirávamos parte do colo na cirurgia e mandávamos para a biopsia, não havia sinal de tumor, ou seja, ele já havia sido eliminado pela radio e quimioterapia. Ou seja, muitos pacientes tinham passado pela cirurgia e pela colostomia sem necessidade”, diz ela.
Foi então que Angelita passou a comparar em pesquisa os resultados dos dois tipos de tratamento: com e sem cirurgia. “No começo, houve muita resistência da comunidade científica. Até hoje ainda há, porque foi uma mudança de paradigma. Não operar mais o paciente era visto como algo arriscado.” Após acompanhar mais de 600 pacientes em 23 anos, o último estágio da pesquisa mostrou que o tratamento combinado entre rádio e quimioterapia conseguiu eliminar o tumor e, consequentemente, a necessidade de cirurgia e de colostomia, em mais de 50% dos casos. “A cirurgia pode causar problemas no sistema urinário e na função sexual, então, evitá-la representa um grande ganho na qualidade de vida dos pacientes.”
Por meio desse tratamento, os pacientes ficam obrigados a passar por um acompanhamento rígido. A intenção é monitorar o organismo para identificar qualquer possível recidiva do câncer. “A técnica, que antes era vista com desconfiança, hoje é estudada em todo o mundo. Já há congressos sobre isso. Os Estados Unidos acabaram de fechar um protocolo de pesquisa da técnica que vai incluir 16 hospitais”, conta ela, que foi convidada para apresentar a pesquisa em duas das mais renomadas universidades americanas: Harvard e John Hopkins.
Perfil. O jeito calmo com que explica a técnica para quem não é médico parece ter ajudado em muitas das conquistas. Angelita diz nunca ter se abalado com os preconceitos velados por ser mulher. “Meus colegas sempre foram muito generosos, mas já ouvi muito dos pacientes que seriam operados por mim a pergunta: Cadê o doutor?”
Também não se intimidou quando sua admissão na pós-graduação do St. Mark’s Hospital, especializado em doenças intestinais, foi negada por dois anos, na década de 1960. “Era local só para homens, mas insisti tanto que me aceitaram.”
Chegou até a cometer uma pequena transgressão em nome das suas pesquisas. Em 1973, em uma viagem aos Estados Unidos, trouxe, escondido na mala, o primeiro aparelho de colonoscopia do País. O exame é a principal forma de diagnóstico de câncer de intestino. “Naquela época, era um valor bem alto. Mal sabíamos que esse aparelho seria o grande aliado na prevenção do câncer de intestino.”
Lecionou na USP até 2002 e, desde aquela época, se dedica ao consultório e às ações da Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino, fundada por ela há dez anos. A produção científica, no entanto, só cresceu. Foram 43 artigos publicados em revistas científicas após a aposentadoria na universidade. “Engatei a marcha pesada no trabalho. É o que me faz feliz”, diz.